1.8.07

por Walker Cubano





Retalhos do cotidiano


Eu me escondo onde a solidão mora, onde a alegria habita, onde o sentimento insiste em sentir... Eu acordo todos os dias, vejo o mundo e sinto menos piedade de mim.

Eu sou de um tempo que se conversava com o porteiro do prédio, que se pedia meio quilo de açúcar emprestado a vizinha, que se vestia branco toda sexta feira, que se benzia quando passava em frente a igreja... Sou de um tempo que não se faz mais, e mesmo que se quisesse fazer, não se faria. Não aparecerão outras Marocas, Pêpas ou Josés, não, nunca mais.


--É verdade seu João, o senhor é que estava certo, o futebol é mesmo uma caixinha de surpresas... Ta vendo aí, meu Vitória perdeu, fiquei foi retado! E assim é que foi, meu time perdeu e meu amor partiu, e agora José? Ah vamos tomar uma para esquecer, e no final a gente divide a conta e o problema continua no mesmo lugar...


--Chegou, era tarde, sentou-se na cadeira velha que ficava no canto da sala, acendeu um cigarro e morreu, é, morreu... Assim, de morte morrida mesmo, é menina, não sabemos o dia de amanhã, a vida da gente não vale nada...

--Não é que foi mesmo, criatura? Eu vi, com esses olhos que a terra há de comer...

--Ah, minha filha, os meus a terra não come, porque já doei...


-- Alô, oi, tudo bem?

-Na santa paz.

--Já soube da última?

--Não, o que foi?

--A vizinha do 502 tá tendo um caso com o porteiro.

-- Mentira!!?

-- Juro por minha mãe mortinha


-- Vizinha, ô, vizinha, tem um quilo de açúcar aí para me emprestar?

-- Tem nada, abençoada, essa casa ta parecendo uma igreja...

-- É, quando tiver um dinheiro compro um carro, odeio ônibus cheio, aquele povo se roçando, aquele fedentina dos diabos, que miséria!

-- Ave Maria, se Deus me der vida e saúde, quero fazer o batizado de minha menina na igreja da Conceição da Praia... Ele vai prover!

-- Oxe, to juntando meu dinheiro para viajar, vou para Sauípe no final do ano, vou me armar, lá tem é gringo, minha filha. Se Deus me ajudar eu fico é rica e abandono essa pobreza. Peço a Deus para ficar rica um dia, porque ser pobre a vida inteira é de arrombar, aff!


E mesmo daqui, do outro lado, do meu mundo, continuo acordando todos os dias, olho no espelho, mais rugas, marcas de expressão, sinais do tempo, respostas do tempo, que não cala, não quer calar. Talvez não consiga prosseguir, talvez a cronologia me impeça, mas vivo cada dia de uma só vez e sinto, continuo sentindo, menos piedade de mim.



ilustração : Artista?Quem?

17.7.07

por Flávia Vasconcelos


Outro Mundo


Acordei num mundo diferente. Aliás, depois de tudo, vi que o meu mundo que é exceção. Acordei num lugar onde o sol parece estar mais acordado, onde a fé vira um ingrediente a mais para a sobrevivência: o pão, a água, a fé e pronto. Numa mesa de bar, lá nesse mundo, se discute o que é felicidade. Entre um gole e outro, hora os ânimos se exaltavam hora serenavam, afinal, definir felicidade não é fácil. Eles podem ser felizes vivendo em prol da esmola, porque não? Tudo bem, estaria eu aqui sendo etnocentrista ao pensar que outro jeito de viver, diferente do meu, não tem felicidade. Mas eu sou do time de cá, que acha que felicidade é não ser marionete na mão de gigantes, que só são gigantes porque souberam com muita perspicácia e crueldade manter-se onde estão.Ter felicidade não é só ter o que comer, viver sem o estresse do barulho ou se apegar a um santo e viver de fé. Eu mesma não defino felicidade, até porque não existe verdade absoluta, mas ser feliz não é apenas sobreviver. Tudo nesse mundo é digno de ser registrado, ou como denúncia ou como beleza. Crianças, mulheres, homens e velhos chegam aos montes em busca da cura de suas dores ou para agradecer caso não as tenham mais. Outras crianças, mulheres, homens e velhos recebem os que chegam, com a ansiedade e a esperança de conseguir mais alguma coisa para comprar seu sustento. Vendem a simpatia, a gentileza, o carinho e sua pureza nas barracas de lona para qualquer um que se aproximar, e, achando eles que isso era pouco, vendem também objetos, que só servem, para os que compram, como lembrança física, e que tem um valor limitado. Sem saberem que o mais valioso é o subjetivo, são as boas energias. E assim vai, num mercado incansável de energias. O sol a pino, as crianças, umas brincando, outras pedindo 10 centavos. Mas a criança é tão especial que, mesmo pedindo o dnheiro, assim mesmo se diverte, cumpre sua triste missão de pedinte na melhor forma possível (se é que existe algo de bom nisso, e se é que isso é missão) pois é criança, e como tal é curiosa e se deixa levar pelas brincadeiras, pelas novidades que em tempo de festa como esse, aparecem a todo vapor, como as lentes que as registram. Lentes essas que usei para não deixar essa beleza esquecida, embora ela fique no pensamento e nos sonhos que certamente virão, como agora por exemplo. Mas experiência como essa, nada e nunca é demais, registra-se de várias formas. Teria muita coisa a dizer sobre essa minha ida ao outro mundo, ao mundo que meu mundinho está inserido. São tantas as coisas, que as palavras se esgotam. Esse mundo se chama Juazeiro do Norte, interior quente de uma terra mais quente ainda, o Ceará. Estive por lá em plena festa dos romeiros, a linda e inesquecível Romaria do Padre Cícero. Só termino com a promessa de me tornar alguém melhor, de saber rir nas dificuldades como os “habitantes” do mundo que conheci. E também colaborar para que a miséria não se transforme em atração para turista ver, ou até mesmo vire cultura popular.




Imagens: "Senhorinha", "Criancinhas" e "Marquinhos", respectivamente, de Flávia Vasconcelos



25.5.07

por Artista?Quem?

Estranho Conhecido




Será que é? Senão é, como há de ser? Mais denso, mais curvo, mais calmo, mais calvo? Talvez menos tenso, menos encolerizado, com mais limites entre o certo e o errado, o “não” e o “sim”, com mais clareza, sem meias palavras e jogos. Disseram-me que seria como dançar feliz sem música de fundo, como ouvir sem que o outro precise dizer, seria como Tom Jobim, Vinícius, Chico, Cartola e Noel numa mesma canção, como Niemeyer e Phillipe Starck assinando um mesmo projeto, seria como um dia com 48 horas de duração e sem trabalho, como um Carnaval eterno. Embora muitos preguem que se pareça com um enforcamento ou um casamento com a dor, um labirinto, um querer quase escravo, uma autoflagelação, e fujam dele, muitos continuam a buscá-lo sem saber o porquê. Será eterno?Durará até o próximo inverno? Estarei um dia de terno no altar? Pode ser que tudo que eu tenha como evidência da sua existência não seja de fato válido e a humanidade inteira esteja errada: o pulsar mais forte, o querer bem, o sofrer junto, a euforia, a saudade, a presença enquanto um se faz ausente, o dormir abraçado, o cantarolar pela manhã, o andar de mãos dadas, o rir de si mesmo, o pensar no futuro, o “eu te amo”, não valham de nada. Provavelmente sejamos todos loucos. Loucos pela felicidade, de um otimismo exacerbado, de um desprendimento com o futuro e com o ridículo. Loucos, como dois camicases que não conseguem jogar o avião, dois homens-bomba medrosos, loucos por um sentimento que não conhece nem a nascente nem o poente. Talvez seja como um feto eterno que nunca virá à luz, um desconhecido. Um estranho conhecido. O amor.



dedicado a Manuela



Imagem: "My Hearts Bleeds no More" de Endorphine

14.5.07

por Walker Cubano

Ao povo de santo



Vida em prol da fé, da crença

Em oração pedimos, em cada súplica

Quilômetros, procissões de quê?

De fé, Jesus, Buda e Alah, velas e crenças

Distintos, sincretismos e misturas, efêmeros e diferenças

De Santo Antônio, Santa Bárbara, São Jorge

É Ogum, Oxum, Oxossi, Iansã

Da procissão ao terreiro

Contas se fundem com terços e velas

Procissões, de tantos e tantas, descrenças

Beatas, cantam, sussurram leve ao ouvido

Fusão de cores, velas, pés inchados

A crença descrente, a dor que não dói, o amor que não ama

Do povo sofrido, da seca, do calor do sertão

De gente que chora, que diz amém e agradece por um pouco de farinha

Dos meninos dos pés descalços, do rancor, da fome

Gente que tem santo e nosso senhor na parede, a benção...

Deus lhe ajude, lhe pague e lhe dê em dobro

Carece não, seu moço

O canto para curar, o santo para abençoar, a fé para crê

Duas, três, quatro, cinco beatas, véus de renda, missão

De quem segue meu padinho pade Ciço, de Juazeiro do Norte

De quem pede, Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo...

Para sempre seja Deus louvado

De quem segura na mão de Deus e vai, de quem nunca foi, todos iremos

Em romaria, em prece, em pau de arara, em busca das “melhoras”, eles vão

Sigam, segue, seguimos

Na estrada de barro, com o chapéu de palha e o lenço na cabeça

Com a enxada, suor no resto e força bruta nas mãos

Onde for nós iremos, onde for “nóis” vai

Quem te mandou aqui, Virgulino?

Não abençôo cangaceiro, Virgulino

Disse Padre Cícero à Lampião

Tudo pela crença do povo, da cidade ou do sertão

Abram alas para as crenças do povo, abram alas para as procissões de fé.




Imagem: Mario Bestetti da série "Romeiros de Pedro Batista"

Depois de um mês de merecidas férias (afinal trabalhamos bastante durante as férias) o Ao Cubo retorna alegria, tristeza ou felicidade geral da nação! o importante é que queremos continuar tirando nossos leitores da inércia que internet muitas vezes se torna.


estamos de volta de novo mais uma vez!
sintam-se em casa, entrem, fiquem a vontade e não reparem a bagunça