
Sobre quebrar dentes, sentir dor, sorrir &c
[Regeneração: eis simultaneamente o sonho e o pesadelo de todo ser humano. Estalar os dedos, deslocá-los e, minutos depois, notar que todos voltaram a seus devidos lugares... e novamente estalá-los. Roer as unhas, mutilá-las e, dias depois, notar que elas voltaram a seus devidos comprimentos... e novamente roê-las. Operar um câncer, removê-lo e, anos depois notar que o mesmo não só voltou, como evoluiu a seu maior tamanho... e reinicia-se a batalha. Preencher os seios, suspendê-los e, décadas depois, notar que a gravidade realmente sempre vence e que, a tal ponto, seria ridículo qualquer tentativa de se reverter a situação.]
Ontem quebrei meus dentes. Andava por aí, pela calçada da praia, à toa, espairecendo, como se costuma dizer, talvez esperando encontrar algo de interessante no decorrer da minha caminhada matinal. Repentinamente tropecei, fui ao encontro de uma rocha; de cara contra a rocha. A queda foi feia, horrenda, espalhafatosa. Perdi três incisivos (dois superiores, um inferior) e um canino.
Entretanto, havia ali três detalhes singulares. Primeiro: ninguém notou minha queda; todos passavam por mim, tranqüilamente, como se nada houvesse ocorrido comigo. Segundo: parece contrário à razão, mas eu caí de propósito!... e sem ao menos conhecer perfeitamente o objeto causador de minha investida. Terceiro, e o mais extraordinário: foi um momento muito especial - diria até agradável - diferente das ocasiões anteriores em que esse tipo de situação - bizarra, porém aprazível - se passou comigo. Sim, já me aconteceu isso antes. Talvez não tão deliberadamente assim, mas de forma igualmente agradável. Sangra um bocado, é bem verdade, mas é interessante. Há muito eu não passava por essa sensação de prazer temporário que, toda vez ao senti-la, tenho a esperança de que seja infinita. Ainda tenho essa sensação em mim e talvez ela dure por algum tempo.
Chegando em casa ninguém sequer comentou. Para eles, não havia o que se comentar; não havia nada ali. Tentei pelo menos estancar o sangramento, não pedi ajuda a dentista algum pois sei que nem o mais capacitado notaria algo de errado em minha dentição.
Ainda não dói, ainda é bom. Mesmo assim, sei que uma hora há de se iniciar a dor. O ocorrido foi ontem e ela ainda não chegou (ela costuma demorar). Já tenho medo de sua chegada. Mas sempre vem, não me surpreende, me estraga. Eu me estrago.
Há quem diga que a autodestruição, quando aprazível, é uma válida válvula de escape (para lugar nenhum, talvez para um recomeço de diferentes autodestruições). É como “beber até cair”, mas, nesse caso, o álcool é a rocha que me provoca entorpecimento e o “cair” é a queda procedida pelo quebrar dos dentes. Eles sempre crescem novamente. É, talvez, o momento ideal de prestar mais atenção ao meu redor. Provavelmente essa é a hora de adquirir ares de humildade e não mais me vangloriar desse bem quase surreal, que é minha constantemente renascente arcada dentária. Acaso seria esse o fato d’eu sentir prazer pela perda de meus dentes, sabendo eu que - logo após a imensa dor – eles renascerão?
Penso na dor física e nessas horas gostaria de ser como Ashlyn Blockers. Não a conhece? Pois veja a situação da garota: Ashlyn Blockers tem cinco anos e é portadora de uma rara anomalia genética que se caracteriza por não suar nem sentir dor, e por isso os pais e professores precisam mantê-la vigiada permanente para evitar que se magoe sem perceber. Ashlyn vive na cidade de Patterson, sul da Geórgia, e os seus pais, John e Tara Blocker, nunca tinham ouvido falar nessa anomalia até a levarem ao médico, aos oito meses, por causa de um olho inchado. O médico pingou algumas gotas no olho de Ashlyn para colorir qualquer partícula que pudesse estar a causar a irritação e, enquanto a coloração revelava uma enorme ferida na córnea, a menina permanecia a sorrir ao colo da mãe.
Um dos problemas comuns nas crianças com esta anomalia é que se ferem a si mesmas sem perceber: durante a dentição, Ashlyn mordia os lábios até sangrar durante o sono e, em determinada altura, enfiou o dedo na boca e arrancou pedaços de pele, sem se dar conta. Não sentia a dor da perda de um pedaço si. Sentia apenas o prazer da autodestruição. Cinco anos. Li sobre o caso num artigo da Ordem dos Médicos Dentistas (coincidência?), de Portugal, traduzido pela jornalista Paula Pedro Martins.
Pode-se dizer que há loucura, crueldade e inconseqüência nisso tudo, mas continuo a me perder nesse labirinto de pedras, à espera de uma solução, uma mão que me puxe, ou uma forma de se eternizar o prazer da autodestruição: analgesia, doce analgesia.
Com a pureza d'alma, espero que meus dentes não cresçam mais. Pra não sofrer a tentação de quebrá-los novamente.
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[E quanto à regeneração da alma, dos sentimentos, algo como uma perda que se recupera logo após, numa questão de tempo? Digo isso para amenizar a perda futura que há de me ocorrer, sim, ela há de me ocorrer. Perco-me, mas sobrevivo. Trata-se de uma regeneração para uma nova perda, mais ou menos como no plano físico. E assim segue-se num ciclo desordenado e imperfeito em que o prejuízo é muitas vezes válido como um lucro].
Ontem olhei os olhos de alguém. Andava por aí, pela calçada da praia, à toa, espairecendo, como se costuma dizer, talvez esperando encontrar algo de interessante no decorrer da minha caminhada matutina. Repentinamente olhei, fui de encontro ao olhar de uma moça; bati de frente com a moça. Foi como um acidente: proposital. Ela olhou em meus olhos, memorizou meu rosto e a partir daquele momento passei a existir...
Um curto adendo, pra não deixar de citar oportunamente a pequena notável islandesa, filha do caríssimo Sr. Guðmund: “Com licença, mas eu tenho de explodir. Explodir este corpo. Acordarei amanhã novo em folha. Um pouquinho cansado, mas novo em folha”.
Sobre a ilustração: auto-retrato por .g.