13.2.06

por .g



Sobre quebrar dentes, sentir dor, sorrir &c


[Regeneração: eis simultaneamente o sonho e o pesadelo de todo ser humano. Estalar os dedos, deslocá-los e, minutos depois, notar que todos voltaram a seus devidos lugares... e novamente estalá-los. Roer as unhas, mutilá-las e, dias depois, notar que elas voltaram a seus devidos comprimentos... e novamente roê-las. Operar um câncer, removê-lo e, anos depois notar que o mesmo não só voltou, como evoluiu a seu maior tamanho... e reinicia-se a batalha. Preencher os seios, suspendê-los e, décadas depois, notar que a gravidade realmente sempre vence e que, a tal ponto, seria ridículo qualquer tentativa de se reverter a situação.]

Ontem quebrei meus dentes. Andava por aí, pela calçada da praia, à toa, espairecendo, como se costuma dizer, talvez esperando encontrar algo de interessante no decorrer da minha caminhada matinal. Repentinamente tropecei, fui ao encontro de uma rocha; de cara contra a rocha. A queda foi feia, horrenda, espalhafatosa. Perdi três incisivos (dois superiores, um inferior) e um canino.

Entretanto, havia ali três detalhes singulares. Primeiro: ninguém notou minha queda; todos passavam por mim, tranqüilamente, como se nada houvesse ocorrido comigo. Segundo: parece contrário à razão, mas eu caí de propósito!... e sem ao menos conhecer perfeitamente o objeto causador de minha investida. Terceiro, e o mais extraordinário: foi um momento muito especial - diria até agradável - diferente das ocasiões anteriores em que esse tipo de situação - bizarra, porém aprazível - se passou comigo. Sim, já me aconteceu isso antes. Talvez não tão deliberadamente assim, mas de forma igualmente agradável. Sangra um bocado, é bem verdade, mas é interessante. Há muito eu não passava por essa sensação de prazer temporário que, toda vez ao senti-la, tenho a esperança de que seja infinita. Ainda tenho essa sensação em mim e talvez ela dure por algum tempo.

Chegando em casa ninguém sequer comentou. Para eles, não havia o que se comentar; não havia nada ali. Tentei pelo menos estancar o sangramento, não pedi ajuda a dentista algum pois sei que nem o mais capacitado notaria algo de errado em minha dentição.

Ainda não dói, ainda é bom. Mesmo assim, sei que uma hora há de se iniciar a dor. O ocorrido foi ontem e ela ainda não chegou (ela costuma demorar). Já tenho medo de sua chegada. Mas sempre vem, não me surpreende, me estraga. Eu me estrago.

Há quem diga que a autodestruição, quando aprazível, é uma válida válvula de escape (para lugar nenhum, talvez para um recomeço de diferentes autodestruições). É como “beber até cair”, mas, nesse caso, o álcool é a rocha que me provoca entorpecimento e o “cair” é a queda procedida pelo quebrar dos dentes. Eles sempre crescem novamente. É, talvez, o momento ideal de prestar mais atenção ao meu redor. Provavelmente essa é a hora de adquirir ares de humildade e não mais me vangloriar desse bem quase surreal, que é minha constantemente renascente arcada dentária. Acaso seria esse o fato d’eu sentir prazer pela perda de meus dentes, sabendo eu que - logo após a imensa dor – eles renascerão?

Penso na dor física e nessas horas gostaria de ser como Ashlyn Blockers. Não a conhece? Pois veja a situação da garota: Ashlyn Blockers tem cinco anos e é portadora de uma rara anomalia genética que se caracteriza por não suar nem sentir dor, e por isso os pais e professores precisam mantê-la vigiada permanente para evitar que se magoe sem perceber. Ashlyn vive na cidade de Patterson, sul da Geórgia, e os seus pais, John e Tara Blocker, nunca tinham ouvido falar nessa anomalia até a levarem ao médico, aos oito meses, por causa de um olho inchado. O médico pingou algumas gotas no olho de Ashlyn para colorir qualquer partícula que pudesse estar a causar a irritação e, enquanto a coloração revelava uma enorme ferida na córnea, a menina permanecia a sorrir ao colo da mãe.

Um dos problemas comuns nas crianças com esta anomalia é que se ferem a si mesmas sem perceber: durante a dentição, Ashlyn mordia os lábios até sangrar durante o sono e, em determinada altura, enfiou o dedo na boca e arrancou pedaços de pele, sem se dar conta. Não sentia a dor da perda de um pedaço si. Sentia apenas o prazer da autodestruição. Cinco anos. Li sobre o caso num artigo da Ordem dos Médicos Dentistas (coincidência?), de Portugal, traduzido pela jornalista Paula Pedro Martins.

Pode-se dizer que há loucura, crueldade e inconseqüência nisso tudo, mas continuo a me perder nesse labirinto de pedras, à espera de uma solução, uma mão que me puxe, ou uma forma de se eternizar o prazer da autodestruição: analgesia, doce analgesia.

Com a pureza d'alma, espero que meus dentes não cresçam mais. Pra não sofrer a tentação de quebrá-los novamente.

*******

[E quanto à regeneração da alma, dos sentimentos, algo como uma perda que se recupera logo após, numa questão de tempo? Digo isso para amenizar a perda futura que há de me ocorrer, sim, ela há de me ocorrer. Perco-me, mas sobrevivo. Trata-se de uma regeneração para uma nova perda, mais ou menos como no plano físico. E assim segue-se num ciclo desordenado e imperfeito em que o prejuízo é muitas vezes válido como um lucro].


Ontem olhei os olhos de alguém. Andava por aí, pela calçada da praia, à toa, espairecendo, como se costuma dizer, talvez esperando encontrar algo de interessante no decorrer da minha caminhada matutina. Repentinamente olhei, fui de encontro ao olhar de uma moça; bati de frente com a moça. Foi como um acidente: proposital. Ela olhou em meus olhos, memorizou meu rosto e a partir daquele momento passei a existir...







Um curto adendo, pra não deixar de citar oportunamente a pequena notável islandesa, filha do caríssimo Sr. Guðmund: “Com licença, mas eu tenho de explodir. Explodir este corpo. Acordarei amanhã novo em folha. Um pouquinho cansado, mas novo em folha”.


Sobre a ilustração: auto-retrato por .g.

10 comentários:

Anônimo disse...

A gente ja corta cabelo, corta unha, faz a barba...
Ta na hora de se auto-mutilar por completo, vamos ver se renascemos...

Anônimo disse...

Grande GG! Já me esbarrei tanto que não sei como meu corpo consegue se regenerar! Acho que nenhum esbarrão foi tão forte a ponto de me matar e assim sendo, me fortaleceu. Tenho medo de me tornar imortal e viver nessa eterna monotonia; realmente seria triste. Gostei muito da técnica do esbarrão dos olhos. Posso utilizar? Vc já assistiu waking life? Tem uma passagem interessante sobre isso... grande abraço

Anônimo disse...

Leandro. .aqui vc parecia normal hehehe, vai maluco cuidado pra num passar a comer lasanha de canudinho viu!

Anônimo disse...

Grande ligaçao ... da praia a guria da Islandia.
Mas como deve ser bom nao sentir dor ne? Quem sabe assim dao importancia a existencia de cada um.
Bjundas GG!

Anônimo disse...

a perda, constroi o carater do individuo e isto é fato


adoro o blog de vocês

bjos

Anônimo disse...

Gê!

Pô, achei massa esse blog... não conhecia esse seu lado escritor... Vc escreve muito bem, parabéns... soube transformar uma simples queda em algo extraordinário e interesante...

falow, beijos.

Suelen

Anônimo disse...

como vc s ja sabem o blog e otimo so e n presta e um dos entegrantes Leu(negão)........tô d ondo ate q em fim eu comentei ne? so q adorei n deu pra ler td pq entrei rapido.............depois confiro melhor.

Anônimo disse...

boa reflexão;
perspicaz...

Anônimo disse...

getúlio, estou sem tempo para ler seu texto mas deve estar bom.
ah, aquele tópico tá bombando.
quando ler o texto volto a comentar

Anônimo disse...

li o texto e ainda divulguei para a MU (munique, da peripécias desimportantes), ela elogiou à beça e no fim todos concordam que você é mesmo muito culto e humilde.
:)